Grupos bolsonaristas e as teorias da conspiração. A falta da autopatognose, isto é, a consciência de que se está doente. Entrevista especial com Leonardo Nascimento

Segundo o pesquisador, um “caldo cultural” marcado por teorias conspiratórias sobre economia, política, sexualidade, religiosidade e “elementos atávicos da personalidade, como violência e medo, estão todos juntos e se corporificam nesse conservadorismo que estamos vendo”

Por: Patricia Fachin, em IHU

As mensagens compartilhadas entre grupos bolsonaristas no Telegram são marcadas por “teorias da conspiração de diversos tipos” e sustentam uma “narrativa coesa” de que existem dois planos em curso no país e no mundo: “um grande plano patriótico, que está em curso, que tenta resolver outro plano ‘esquerdista’ ou ‘comunista’, que é o plano do mal”, que visa a criminalização das pessoas, o banimento da liberdade e “quer acabar com a família, com Deus e com a religião”, resume Leonardo Nascimento, na entrevista a seguir concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

O pesquisador, que investiga e examina os conteúdos compartilhados no Telegram há dois anos, sublinha que os dados em texto, áudio e vídeo divulgados difundem a teoria de que “existe uma nova ordem mundial que é, ao mesmo tempo, um encontro de forças econômicas e políticas que querem controlar o mundo e as pessoas. Dentro disso, entra a questão da Covid-19, da vacina e da redução populacional que esses dominadores supostamente querem fazer. Essas grandes teorias conspiratórias globais têm velhos elementos que já conhecíamos, como o antissemitismo, porque a maioria dessas forças econômicas é atribuída a atores judeus e a líderes específicos que estão sendo manipulados e se valendo das pessoas. Ou seja, eles vão conectando diferentes elementos de teorias da conspiração e fazendo um grande conglomerado explicativo da realidade. Nesse sentido, isso é muito parecido, em termos de forma, com ‘o grande plano para Bolsonaro’: tudo o que está acontecendo, supostamente, teria uma razão para acontecer e tudo já está traçado estrategicamente de forma a priori, de tal modo que o desfecho será a vitória”.

Os ataques e crimes cometidos nas sedes dos três poderes no domingo, 08-01-2023, menciona, são compreendidos como uma “etapa deste plano em curso. O próprio Bolsonaro ajudou a alentar essa ideia ao dizer que só faria o que o povo quisesse – e com ele, por tabela, as forças militares. Então, era preciso que o povo fosse para as ruas, se manifestasse e, no momento em que isso acontecesse, o Exército iria apoiá-los nesse grande plano para destruir os esquerdistas ou sei lá o quê. Tanto é que a frustração deles foi grande. Tem um compilado de vídeos que mostram pessoas chorando desesperadamente nas portas dos quartéis, pedindo que os militares saíssem, ou revoltados, dizendo que eles haviam traído a pátria. Eles foram para lá esperando que acontecesse algo que ainda não aconteceu. Diante disso, a narrativa não morre porque um fato não aconteceu. Eles interpretam que o que deveria acontecer ainda está por vir. O tempo todo acontece essa retroalimentação”.

A seguir, Nascimento explica como esses grupos operam, quais seus discursos e modos de argumentação e pontua os desafios destas narrativas para o futuro do país. “Para as forças estatais que querem manter a ordem, isso é cansativo porque nunca se sabe o que realmente vai acontecer. E é nesse momento de elevar a tensão sobre o que vai acontecer, que eles ganham politicamente. Segundo o filósofo Jean Baudrillard, o terror vence quando temos medo ou incerteza o tempo todo”, afirma.

Leonardo Nascimento é graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Leciona no Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação da UFBA e no PPG em Ciências Sociais da mesma universidade e coordena o Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA.

Confira a entrevista.
IHU – Recentemente, o senhor declarou que há uma “narrativa coesa” nos grupos bolsonaristas, que “confiam que há ‘grande plano’ em curso”. Em que consiste este “grande plano em curso” e o que tem observado analisando os conteúdos compartilhados nestes grupos?

Leonardo Nascimento – O que vou responder está relacionado a uma pesquisa que desenvolvemos desde 2021, analisando grupos que atuam no Telegram, estudo que tem como coordenador, além de mim, o professor Paulo Fonseca, da UFBA, e a professora Letícia Cesarino, da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Se as eleições de 2018 foram marcadas pelo compartilhamento de mensagens no WhatsApp, as do ano passado foram marcadas pelo compartilhamento de mensagens no Telegram. O que percebemos nestes grupos é que eles são marcadamente atravessados por teorias da conspiração de diversos tipos. Nesse sentido, os diferentes grupos que analisamos têm diferentes perfis. Alguns grupos são predominantemente políticos, outros são religiosos, outros, antissemitas, mas em todos paira um grau de teoria da conspiração.

No final de 2022, quando eles perceberam a derrota eleitoral do presidente Bolsonaro, passaram a negá-la e a negam até hoje porque acham que ela só ocorreu porque as urnas foram fraudadas. Quando perceberam que a derrota era inevitável e que o novo governo iria acontecer, eles passam a acreditar que existe uma razão oculta por trás de todos os acontecimentos, que em algum momento vai culminar com o retorno de Bolsonaro e com a derrota do que eles chamam de esquerdistas ou comunistas que estão no poder.

Seria totalmente inadequado eu afirmar que essas pessoas são delirantes ou paranoicas. Não estou afirmando isso, mas gostaria de dizer que existem elementos paranoicos muito fortes em alguns desses discursos que circulam nas redes sociais e no Telegram, no sentido de que a grande característica do delírio paranoico é a ideia de que existe um sentido em todas as coisas. Ou seja, que nada ocorre por acaso. No caso dessas ações coletivas, os integrantes desses grupos começaram a utilizar o Diário Oficial da União como forma de decodificar o que estaria acontecendo no Brasil. Segundo eles, os estrategistas – ex-ministros de Bolsonaro – estariam tomando decisões que tinham significados estratégicos. Além disso, eles divulgaram fotos do presidente com a mesa bagunçada para tentar entender quais eram os códigos que estavam ocultos: a caneta azul, o borrão vermelho, alguma coisa verde etc.

IHU – Como esses grupos se retroalimentam para sustentar discursos que, na prática, se mostram falsos? Por exemplo, uma série de notícias falsas circularam antes da virada do ano, divulgando a suposta publicação, no Diário Oficial da União, de decretos assinados por Bolsonaro para que os militares tomassem o poder, mas, obviamente, não se confirmaram na prática. Mesmo assim, grupos bolsonaristas esperavam que o presidente Lula não assumisse o cargo em primeiro de janeiro.

Leonardo Nascimento – A melhor forma de compreender esses grupos é nos deslocar de todo o pensamento racional e de nossas crenças ideológicas, sejam elas religiosas, sejam políticas, para tentar entender o que acontece com essas pessoas. Em nenhum momento elas acham que o que estão pensando ou fazendo é delirante. Elas não têm aquilo que chamamos, em psicologia, de autopatognose, ou seja, a consciência de que se está doente. Elas não acham que estão erradas ou que essa realidade é falsa. Para muitas delas, quem está na realidade falsa somos nós, que estamos iludidos por um atual presidente que nos controla e nós não sabemos que nos controlam.

Essas crenças são continuamente validadas pelas redes sociais, pelas pessoas com quem elas falam o tempo todo na Igreja e no trabalho. Geralmente, essas pessoas não leem a grande mídia porque acham que a grande mídia é vendida ou noticia informações falsas. Os grandes canais de notícia e os grandes jornais, para essas pessoas, são falsos ou estão compactuando com o que está aí. Então, as pessoas não leem jornal, não assistem televisão ou só assistem para criticar os veículos. Se você conversar com essas pessoas, verá que são profundamente convictas do que estão dizendo, da defesa que fazem do ex-presidente Bolsonaro.

IHU – A que atribui a vivência e adesão dessas pessoas a uma realidade paralela?

Leonardo Nascimento – Primeiro, deveríamos tentar entender essas pessoas do ponto de vista de quais grupos sociais elas pertencem e em quais espaços sociais transitam. Elementos de classe estão presentes, elementos raciais, até certo ponto, mas sobretudo elementos religiosos e morais muitas vezes estão presentes e instauram uma luta inconciliável entre o bem e o mal, entre o amigo e o inimigo. A lógica binária marca profundamente o comportamento dessas pessoas. Elas acreditam, profundamente, que os grupos políticos esquerdistas ou petistas ou vermelhos, como chamam, querem destruir a família, acabar com a religiões, transformar a sexualidade ou querem fazer com que criaturas supostamente puras, as crianças, se tornem sexualizadas. Essas crenças estão atreladas a um deslocamento da realidade. Não podemos esquecer que as periferias do Brasil são profundamente evangélicas e que esse é um elemento forte dentro do bolsonarismo. Não estou querendo dizer que todos os evangélicos são bolsonaristas ou são necessariamente desconectados da realidade, mas uma boa parte dos apoiadores têm crenças religiosas. Nas manifestações, vemos as rezas, pessoas falando em línguas etc.

IHU – Quais as principais narrativas e teorias conspiratórias presentes nos grupos bolsonaristas do Telegram? Pode citar exemplos?

Leonardo Nascimento – Não saberia fazer uma distinção entre elas porque estão mescladas o tempo todo. Nós trabalhamos com dados em texto, áudio e vídeo, que são gerados nesses grupos. Então, é muito material diferente vindo de diferentes partes do país, de diferentes usuários. Nesse sentido, é complicado colocarmos uma linha limite entre o que é uma narrativa política de protesto e o que é uma teoria conspiratória. Essas coisas se atravessam e os diferentes usuários aderem de maneira diferenciada a essas narrativas.

Vou dar um exemplo recente: divulgaram mensagens de que o presidente Lula seria, na verdade, um sósia do Lula. Eu levo tão a sério o que eles falam, que não consigo mais rir disso. Alguns deles acham que Lula morreu e que este Lula que está aí é um Lula fake, um ator. Para comprovar, eles fazem diversas análises sobre a mão do Lula: que antes a mão dele aparecia com mais veias e agora a mão dele não aparece com tantas, que o formato da orelha e do nariz é diferente etc. O que me impressiona é que, de um lado, eu vejo isso nos grupos de Telegram na forma de dados digitais, e, de outro lado, escuto um casal, aparentemente de alto padrão intelectual, conversando e debatendo seriamente sobre isso em um restaurante em Salvador.

Outro exemplo é o de que houve um complô entre o Supremo Tribunal Federal e as forças políticas da “esquerda” ou do comunismo, que fez com que o presidente Lula saísse da cadeia, assumisse o posto e voltasse ao poder. Muitas dessas pessoas não conseguem aceitar a ideia de que Lula assumiu a presidência. Elas acham que ele é um ex-presidiário e não poderia nunca mais voltar à presidência. Note que isso não foi construído da noite para o dia. Temos que pensar no longo prazo e perceber como essas crenças foram construídas ao longo dos últimos anos, ao dizer que o PT destruiu o país e roubou. Ou seja, o antipetismo, o antilulismo e o antidilmismo estavam preparando a cena para a ascensão de Bolsonaro, que se dizia fora da política, contra o político, quando, na verdade, sempre esteve dentro da política. Quando Bolsonaro chegou ao poder, essa forma de proceder, de negar os consensos mínimos da realidade – que é muito parecida com a forma do presidente Donald Trump –, se tornou a norma e a regra geral.

IHU – Nestes grupos, como aparece a ideia de que há uma conspiração internacional?

Leonardo Nascimento – Eles falam que existe uma nova ordem mundial que é, ao mesmo tempo, um encontro de forças econômicas e políticas que querem controlar o mundo e as pessoas. Dentro disso, entra a questão da Covid-19, da vacina e da redução populacional que esses dominadores supostamente querem fazer. Essas grandes teorias conspiratórias globais têm velhos elementos que já conhecíamos, como o antissemitismo, porque a maioria dessas forças econômicas é atribuída a atores judeus e a líderes específicos que estão sendo manipulados e se valendo das pessoas. Ou seja, eles vão conectando diferentes elementos de teorias da conspiração e fazendo um grande conglomerado explicativo da realidade. Nesse sentido, isso é muito parecido, em termos de forma, com “o grande plano para Bolsonaro”: tudo o que está acontecendo, supostamente, teria uma razão para acontecer e tudo já está traçado estrategicamente de forma a priori, de tal modo que o desfecho será a vitória.

Nos grupos, falam o tempo todo em Trump, em movimentos internacionais como o Freedom Convoy, do Canadá, mencionam o presidente da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, líderes mundiais dos grandes países, como Joe Biden e outros. E, mais importante: eles utilizam, no caso específico do delírio conspiratório contra as vacinas, artigos apócrifos, artigos não validados por pares, para referendar a tese deles de que as vacinas estão matando as pessoas. Ou seja, não é uma crença delirante ou birra de criança. Eles argumentam e querem argumentar, cientificamente, que existem verdades por trás das vacinas que a maioria dos vacinados iludidos não consegue enxergar, mas eles conseguem. Usam exemplos de médicos e se valem da controvérsia científica – que é algo inerente ao debate científico, ao debate de ideias e de perspectivas em todas as áreas, não somente nas humanidades, mas, inclusive, na química, no sentido de usar determinado método em detrimento de outro – do debate e da dúvida que paira sempre sobre a ciência, para dizer que eles são científicos e que a ciência que querem impor para eles é uma “ciência ideológica” porque se essa “ciência não fosse ideológica, ela reconheceria que a vacina é um instrumento de morte”.

IHU – Que grupos sociais corroboram esses discursos? Em que medida eles são cooptados pelo bolsonarismo ou cooptam o próprio bolsonarismo para a defesa de suas posições?

Leonardo Nascimento – É muito difícil responder a essa questão porque estamos lidando com mensagens de redes sociais. Para fazer essa construção de tipos sociais, eu estou usando uma metodologia até certo ponto contestável, mas válida em certa medida, que é a questão dos tipos ou temáticas nos grupos e canais do Telegram que analisamos. Seria muito diferente se conseguíssemos propriamente entrevistar essas pessoas, o que seria impossível porque elas têm aversão à pesquisa e aos pesquisadores da área de humanidades porque acham que esses pesquisadores são, inerentemente, esquerdistas. Apesar disso, percebemos que determinadas teorias da conspiração conseguem ter uma penetração maior a depender do tipo de grupo/canal em que circula: grupos mais ligados às armas, colecionadores, têm determinadas crenças e características; grupos religiosos, têm outras; grupos da política e da economia, outras crenças. Ou seja, diversas teorias da conspiração estão presentes.

Muitas vezes não é o bolsonarismo que consegue cooptar essas pessoas, mas elas veem no bolsonarismo algo que se adequa às suas crenças que, em última instância, são crenças brasileiras. O Brasil é profundamente conservador, religioso, preconceituoso. Então, isso é algo que é constitutivo do país enquanto nação. Nesse sentido, não há nenhuma novidade. Não sei se esse rótulo bolsonarista vai permanecer, mas ele não é nada mais do que o velho conservadorismo à brasileira, com um preconceito de classe, acompanhado de um preconceito regional.

Veja as eleições e a ideia de que o Nordeste elegeu o Lula. Mas não é o Nordeste somente, mas os pobres, os homens e mulheres negras. Tem também o problema sexual: a partir do momento em que determinados grupos, historicamente alijados do debate público, passam a se apresentar de maneira a reivindicar direitos, essas pessoas se sentem ameaçadas. É um caldo cultural em que economia, política, sexualidade, religiosidade e elementos atávicos da personalidade, como violência e medo, estão todos juntos e se corporificam nesse conservadorismo que estamos vendo.

IHU – Na semana passada, jornais publicaram uma série de matérias sobre as mensagens enviadas nos grupos bolsonaristas antes do ataque aos três poderes, no domingo, 08-01-2023. O que o senhor observou nos grupos antes das invasões e dos crimes cometidos no domingo?

Leonardo Nascimento – Nós já havíamos percebido que esses movimentos estavam ocorrendo. Desde a vitória do presidente Lula, no segundo turno das eleições, eles estão falando em desobediência civil, em golpe militar, em artigo 142, em tomar o poder. Isso estava sempre presente. O que estávamos esperando era quando, de fato, iria correr uma passagem da fala ao ato, quando fariam alguma coisa. Esperávamos que seria no dia primeiro, mas o fizeram somente no dia oito.

IHU – Como interpreta os ataques e crimes cometidos por bolsonaristas na invasão aos três poderes à luz do “grande plano em curso”?

Leonardo Nascimento – O ataque foi uma etapa deste plano em curso. O próprio Bolsonaro ajudou a alentar essa ideia ao dizer que só faria o que o povo quisesse – e com ele, por tabela, as forças militares. Então, era preciso que o povo fosse às ruas, se manifestasse e, no momento em que isso acontecesse, o Exército iria apoiá-los nesse grande plano para destruir os esquerdistas ou sei-lá-o-quê. Tanto é que a frustração deles foi grande. Tem um compilado de vídeos que mostram pessoas chorando desesperadamente nas portas dos quartéis, pedindo que os militares saíssem, ou revoltados, dizendo que eles haviam traído a pátria. Eles foram para lá esperando que acontecesse algo que ainda não aconteceu. Diante disso, a narrativa não morre porque um fato não aconteceu. Eles interpretam que o que deveria acontecer ainda está por vir. O tempo todo acontece essa retroalimentação.

IHU – Como os crimes cometidos no domingo repercutiram e estão repercutindo em grupos bolsonaristas? A tendência é aumentar ou diminuir a adesão a esses grupos?

Leonardo Nascimento – Eles acham que aqueles que quebraram ou cometeram atos de violência não eram patriotas, mas infiltrados esquerdistas. Tem uma cena de uma pessoa que sacode uma bandeira do PT após quebrar um vidro, com a câmera devidamente posicionada para ela. Essa imagem já serve de prova cabal, para eles, de que determinadas pessoas eram esquerdistas. Por que alguém que está no movimento iria quebrar um vidro e estar com uma bandeira do PT nas costas? Não faz sentido. Mas, para eles, faz. Bolsonaristas dizem que não cometeram crimes, que isso foi feito por infiltrados petistas e que isso faz parte de um grande plano do mal. Portanto, existem dois planos: um grande plano patriótico, que está em curso, que tenta resolver outro plano “esquerdista” ou “comunista”, que é o plano do mal, o qual tenta criminalizá-los, banir a liberdade deles, e quer acabar com a família, com Deus e com a religião.

IHU – Outro aspecto que chama a atenção é a performance de filmar, fotografar e divulgar todas as ações ao vivo nas redes sociais, com palavras de ordem. Como interpreta isso?

Leonardo Nascimento – Um dos vídeos que mais circula entre eles é um em que uma pessoa filma, de dentro de um dos prédios, eles entrando, sem quebrar absolutamente nada e, de repente, eles começam a prender infiltrados que estavam lá. Eles próprios, os patriotas, amarraram algumas pessoas que estavam infiltradas. Eles dizem que não depredaram o patrimônio público; que foram outros que quebraram as coisas.

Em relação a eles se filmarem, eles não acham que estão cometendo crime algum. Eles dizem que estão protestando pelo futuro do país, pelas suas famílias. As câmeras já fazem parte do dia a dia deles. A própria política e a nossa vida se tornaram performativas através das redes sociais. Então, eles querem postar essas coisas. Inclusive, eles querem atrair outros patriotas e por isso estão nas redes.

IHU – Que semelhanças e diferenças percebe entre os episódios que ocorreram e ocorrem no Brasil no momento e os que ocorreram nos EUA após a derrota de Trump nas últimas eleições e a invasão do Capitólio?

Leonardo Nascimento – Temos debatido sobre isso. Embora existam similaridades, existem muitas diferenças entre esses acontecimentos, em relação aos grupos que estavam lá, o que pretendiam com aquilo. O acontecimento do Capitólio serviu mais como inspiração para o que aconteceu em Brasília, ou seja, não é uma repetição de algo similar. Há muitas diferenças em termos do que foi feito, como foi feito, dos objetivos dos grupos e de como tudo foi organizado.

IHU – Quais são os riscos da atual conjuntura para a democracia e para a elaboração de um projeto de país?

Leonardo Nascimento – A maior preocupação que tenho hoje é em relação à habilidade de difusão de conteúdos entre esses grupos porque eles se retroalimentam. Essa forma de política, em que a opinião do outro é impossível para mim – com uma relação de extermínio do outro –, gera posicionamentos que são impossíveis de serem digeridos.

Os dois lados não querem compreender o que está acontecendo com o lado oposto. Existem dois posicionamentos – não estou equivalendo os dois – políticos, um pró-Bolsonaro e outro, pró-democracia, e eles não dialogam entre si. A tendência desse tipo de comportamento é agravar ainda mais a situação.

Estou muito preocupado porque isso que aconteceu no dia 08-01-2023 pode se tornar a regra de agora em diante. A partir do momento em que o Estado se torna presente e mostra que tem limites no que esses grupos organizados estão fazendo, a grande narrativa deles é dizer que estão sendo injustiçados, que estão presos em um lugar, sem comida. Eles estão dizendo que estão cerceados da liberdade.

Existe, fortemente, a possibilidade de que novos eventos, como microataques, aconteçam. Nesta semana, divulgaram um mapa dos locais que eles estavam planejando atacar, em zonas sensíveis: hidrelétricas, estações de energia, pontes, rodovias, aeroportos. Eles lançam várias informações, mas nunca se sabe se isso procede ou não. Eles vão fazendo experimentos para ver se terá adesão, para ver como o outro lado vai reagir em relação à convocatória, até a hora em que fazem algo concretamente. Eles fazem várias chamadas de mobilizações até que uma ocorra de fato. Para as forças estatais que querem manter a ordem, isso é cansativo porque nunca se sabe o que realmente vai acontecer. E é nesse momento de elevar a tensão sobre o que vai acontecer, que eles ganham politicamente. Segundo o filósofo Jean Baudrillard, o terror vence quando temos medo ou incerteza o tempo todo.

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

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